segunda-feira, 28 de abril de 2014

lamento para a língua portuguesa



lamento para a língua portuguesa

não és mais do que as outras, mas és nossa,
e crescemos em ti. nem se imagina
que alguma vez uma outra língua possa
pôr-te incolor, ou inodora, insossa,
ser remédio brutal, mera aspirina,
ou tirar-nos de vez de alguma fossa,
ou dar-nos vida nova e repentina.
mas é o teu país que te destroça,
o teu próprio país quer-te esquecer
e a sua condição te contamina
e no seu dia-a-dia te assassina.
mostras por ti o que lhe vais fazer:
vai-se por cá mingando e desistindo,
e desde ti nos deitas a perder
e fazes com que fuja o teu poder
enquanto o mundo vai de nós fugindo:
ruiu a casa que és do nosso ser
e este anda por isso desavindo
connosco, no sentir e no entender,
mas sem que a desavença nos importe
nós já falamos nem sequer fingindo
que só ruínas vamos repetindo.
talvez seja o processo ou o desnorte
que mostra como é realidade
a relação da língua com a morte,
o nó que faz com ela e que entrecorte
a corrente da vida na cidade.
mais valia que fossem de outra sorte
em cada um a força da vontade
e tão filosofais melancolias
nessa escusada busca da verdade,
e que a ti nos prendesse melhor grade.
bem que ao longo do tempo ensurdecias,
nublando-se entre nós os teus cristais,
e entre gentes remotas descobrias
o que não eram notas tropicais
mas coisas tuas que não tinhas mais,
perdidas no enredar das nossas vias
por desvairados, lúgubres sinais,
mísera sorte, estranha condição,
mas cá e lá do que eras tu te esvais,
por ser combate de armas desiguais.
matam-te a casa, a escola, a profissão,
a técnica, a ciência, a propaganda,
o discurso político, a paixão
de estranhas novidades, a ciranda
de violência alvar que não abranda
entre rádios, jornais, televisão.
e toda a gente o diz, mesmo essa que anda
por tal degradação tão mais feliz
que o repete por luxo e não comanda,
com o bafo de hienas dos covis,
mais que uma vela vã nos ventos panda
cheia do podre cheiro a que tresanda.
foste memória, música e matriz
de um áspero combate: apreender
e dominar o mundo e as mais subtis
equações em que é igual a xis
qualquer das dimensões do conhecer,
dizer de amor e morte, e a quem quis
e soube utilizar-te, do viver,
do mais simples viver quotidiano,
de ilusões e silêncios, desengano,
sombras e luz, risadas e prazer
e dor e sofrimento, e de ano a ano,
passarem aves, ceifas, estações,
o trabalho, o sossego, o tempo insano
do sobressalto a vir a todo o pano,
e bonanças também e tais razões
que no mundo costumam suceder
e deslumbram na só variedade
de seu modo, lugar e qualidade,
e coisas certas, inexactidões,
venturas, infortúnios, cativeiros,
e paisagens e luas e monções,
e os caminhos da terra a percorrer,
e arados, atrelagens e veleiros,
pedacinhos de conchas, verde jade,
doces luminescências e luzeiros,
que podias dizer e desdizer
no teu corpo de tempo e liberdade.
agora que és refugo e cicatriz
esperança nenhuma hás-de manter:
o teu próprio domínio foi proscrito,
laje de lousa gasta em que algum giz
se esborratou informe em borrões vis.
de assim acontecer, ficou-te o mito
de haver milhões que te uivam triunfantes
na raiva e na oração, no amor, no grito
de desespero, mas foi noutro atrito
que tu partiste até as próprias jantes
nos estradões da história: estava escrito
que iam desconjuntar-te os teus falantes
na terra em que nasceste, eu acredito
que te fizeram avaria grossa.
não rodarás nas rotas como dantes,
quer murmures, escrevas, fales, cantes,
mas apesar de tudo ainda és nossa,
e crescemos em ti. nem imaginas
que alguma vez uma outra língua possa
pôr-te incolor, ou inodora, insossa,
ser remédio brutal, vãs aspirinas,
ou tirar-nos de vez de alguma fossa,
ou dar-nos vidas novas repentinas.
enredada em vilezas, ódios, troça,
no teu próprio país te contaminas
e é dele essa miséria que te roça.
mas com o que te resta me iluminas.

Vasco Graça Moura, in "Antologia dos Sessenta Anos"



domingo, 27 de abril de 2014

CARTA A VASCO GRAÇA MOURA


Para o Vasco Graça Moura 

                De Matosinhos já partiras há muito. Ficaram para trás as idas para o liceu de eléctrico e foste para Lisboa estudar. Por cá ficou-te a família e a namorada, minha amiga, com quem casaste e tiveste os teus filhos, Vasco e Gonçalo, até que o teu coração te levou para outro amor, diferente do primeiro.  Os nossos filhos cresceram por perto. Matosinhos era uma vila onde toda a gente se conhecia. Por isso pudemos seguir ao longe, mas muito de perto, a trajectória do que foi a tua vida sobretudo depois do divórcio. Julgo que saberás que a Nani sempre te amou e te esperou  ainda muito tempo. Só que não cabia já na vida que escolheste, partilhada entre a advocacia, a política e a literatura. Contudo foste o seu grande amor. Disse-mo ela numa noite, num país longínquo, sentadas as duas numa praia infinita de areias quentes, esperando que a lua chegasse até nós para irmos nadar à sua luz. Ela também refez a sua vida com alguém que a amava e ama muito e lhe deu a atenção que ela já não sente, mas precisa, neste seu peregrinar pela doença. Julgo que não faltará muito para vocês se reencontrarem. Então acertarão as contas da vossa vida em comum.
Mas como a vida é uma caixa de surpresas, se te perdi então, acabei por te recuperar através dos teus netos, os filhos gémeos do Vasco e da Patrícia, que são sobrinhos do namorado de uma das minhas netas e um dia me apareceram cá em casa para almoçar. E gostaram da ideia de eu conhecer os avós. Tantas perguntas que eles me fizeram! Dessa conversa surgiu a ideia do Gonçalo fazer uma quadra para te levar. E fê-la. E levou-ta para o fim de semana em Almeirim. Nesse momento, sem te ver, através deles, voltaste de novo à minha vida pessoal. Como diria a minha mãe, sábia dos anos vividos, a vida tem sempre um recomeço. Tal como a amizade.
                Obrigada pelo que fizeste pela nossa língua. Obrigada pelos teus textos e poemas. Obrigada pelo teu desacordo sobre o triste acordo que rebaixa a nobreza e a pureza do nosso português nascido lá longe, há muitos séculos, e que é uma referência mundial - a 5ª língua mais falada. Obrigada por teres sido algum tempo um dos nossos desta terra de praia, mar azul e muitas nortadas. Obrigada por teres conseguido ser igual a ti próprio até ao fim.
Até um dia, Vasco. Fica em paz. E, se tiveres oportunidade ,escreve mais umas coisinhas. Quando nos reencontrarmos vamos ter muito que conversar sobre o tempo perdido.
Isabel Lago

 Por respeito para com o destinatário, este texto não respeita as normas do Novo Acordo Ortográfico

sexta-feira, 18 de abril de 2014

NA DESPEDIDA DE GABRIEL GARCIA MARQUEZ - UMA LIÇÃO



Deus meu, se eu tivesse um pedaço de vida!… Não deixaria passar um só dia sem dizer às pessoas: amo-te, amo-te. Convenceria cada mulher e cada homem de que são os meus favoritos e viveria apaixonado pelo amor.
Aos homens, provar-lhes-ia como estão enganados ao pensar que deixam de se apaixonar quando envelhecem, sem saber que envelhecem quando deixam de se apaixonar.

segunda-feira, 14 de abril de 2014

Comemoração da batalha de La Lys

http://sicnoticias.sapo.pt/pais/2014-04-13-dezenas-de-emigrantes-assinalaram-96-anos-da-batalha-de-la-lys-em-franca

quarta-feira, 9 de abril de 2014

O 9 de Abril e a minha avó materna

Só conheço a minha avó Delfina através das histórias que a minha mãe contava dela. Faleceu no fim da 1º Grande Guerra, durante a pneumónica, juntamente com 3 filhos, deixando um viúvo e 4 outros filhos, de que a minha mãe era a mais nova. Contudo é uma pessoa que ficou marcada na minha vida de um modo especial por um facto que a minha mãe me contava todos os anos a 9 de Abril, data da batalha de La Lys, em que as tropas portuguesas, intervenientes naquele conflito europeu foram dizimadas naquilo que foi a maior derrota portuguesa desde Alcácer Quibir. Filha de lavradores abastados de uma família que deu um bispo à cidade do Porto, tivera a oportunidade de aprender a ler e a escrever. A crise que se vivia obrigara-a a fazer da sua actividade favorita, a tecelagem, um complemento para o orçamento doméstico. Sendo das raras pessoas letradas naquela aldeia, a ela se dirigiam todos quantos queriam saber o que diziam as cartas que ali chegavam vindas da França e dos “Brasis”. E a Delfina tecedeira juntava no terreiro da casa que eu ainda conheci, os que dela precisavam para saber novas, boas ou más, dos que estavam longe. Quando eu própria aprendi a ler (coisa que continuo a fazer) veio parar-me às mãos um livrinho de Júlio Dinis intitulado “A Morgadinha dos Canaviais” em que a principal personagem feminina se entregava ao mesmo labor da minha avó Delfina: ler cartas. E a 9 de Abril de cada ano eu relembro-a com orgulho e leio respeitosamente a resposta da Morgadinha a Henrique quando ele lhe deu a conhecer que a tinha surpreendido em plena actividade de leitura num dos caminhos da aldeia: "-Aquela gente encontrou-me no caminho quando eu voltava de uma visita a uns parentes pobres, e não me deixou sem que eu lhe abrandasse a ânsia de coração que a afligia. Coitados! Que havia eu de fazer? Diga-me, já pensou no suplício que deve ser olhar a gente para uma folha de papel escrita, na qual sabemos que se fala de uma pessoa querida,e não ter poder para decifrar aquele enigma? Que martírio! Eu. por mim, confesso que me falta o ânimo para recusar pedidos daqueles, como me faltaria para negar uma gota de água ao desgraçado que visse a morrer de sede. A crueldade seria quase igual." Um dia te conhecerei, avó. Até lá envio-te um beijo e agradeço-te por teres sido quem foste.